Em O Jornalista e o Assassino, Janet Malcolm aborda questões éticas do jornalismo, como relação com as fontes e formulação de juízos de valor. O livro é um relato sobre a história do processo que Joe McGinniss, jornalista consagrado e escritor de um Best-Seller, sofreu de Jeffrey MacDonald, condenado pelo assassinato de sua família e protagonista de sua obra, Fatal Vision. Fraude e quebra de contrato foram os motivos alegados por MacDonald para processar e ganhar 350 mil dólares de McGinniss. Através desse caso, Malcolm discute como McGinniss pecou eticamente ao fazer a sua obra.
Para a autora de O Jornalista e o Assassino, o jornalismo é uma atividade indefensável, onde “os mais pomposos falam da liberdade de expressão e do direito público, os menos talentosos falam sobre a arte e os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida". O debate de como agir em relação às fontes é complexo. No próprio julgamento do caso McGinniss-MacDonald, escritores afirmaram que induzir o entrevistado a falar faz parte da prática para se conseguir obter mais informações e é parte do método deles. Fica uma pergunta: Mesmo que se trate de mentir para um assassino, até onde os fins justificam os meios?
Para escrever Fatal Vision, McGinniss passou um verão inteiro com MacDonald. Nesse período, eles se tornaram melhores amigos e confidentes. O suposto assassino sempre alegou inocência ao jornalista. McGinniss, por sua vez mostrava-se compreensivo em relação a sua fonte, apesar de cada vez menos acreditar na inocência de MacDonald. Para Malcolm, aproximação de jornalista e fonte não convém eticamente, visto que a fonte passa a criar expectativas sobre o que será divulgado. Ela afirma que se o jornalista discorda de certa posição do entrevistado, ele não pode afirmar que concorda apenas para conseguir informações. Isso caracteriza o desvio ético.
Mesmo alegando inocência, MacDonald foi condenado e preso. Enquanto isso, McGinniss precisava terminar seu livro. Eles passaram a se comunicar através de cartas, onde o jornalista pedia as informações para o detento, que respondia através de cartas e gravações. Para manter MacDonald falando, o jornalista sempre escrevia palavras de apoio em suas cartas. Dizia que acreditava na inocência de seu “amigo”, pedia informações e tentava afastar o detento de outros interessados em escrever a história dos assassinatos. As cartas acabaram-se tornando a maior prova do desvio ético do escritor, que escondeu o verdadeiro teor do livro o máximo que podia de MacDonald.
Fatal Vision mostra uma hipótese sobre o crime que nem a promotoria havia levantado: A ingestão de um remédio moderador de apetite poderia ter causado um surto psicótico em MacDonald e o levou a cometer o crime. Nas cartas que ele escreveu para o condenado o conteúdo era bem diferente: “Como foi que doze pessoas puderam não só concordar em acreditar em uma sugestão tão horrenda, como concordar, tendo a vida de um homem em jogo, que acreditavam nela além de qualquer dúvida razoável? Completos estranhos não precisam mais do que cinco minutos para ver que você não teve um julgamento completamente justo", era o que diziam as cartas do jornalista.
A lista de erros na relação de McGinniss com MacDonald foi imensa. Ele poderia publicar o que quisesse se logo no início das entrevistas tivesse deixado claro que poderia entrar em desacordo com a versão do acusado e que publicaria o livro da maneira na qual achasse melhor. Ele não o fez. Jeffrey tentou claramente manipular o jornalista, afinal ele acreditava que seria escrito um livro sobre “o homem decente na prisão”, mas McGinniss fez pior: Deixou MacDonald acreditar que estava o convencendo de sua verdade, aceitando inclusive participar da sua equipe de defesa. Porém, em pouco tempo, o jornalista já estava convencido que MacDonald era o assassino e passou a trabalhar com as hipóteses de porque ele havia matado a família.
Por mais que o crime de MacDonald seja bem mais grave que o de McGinniss, o método de coleta de informações é importante para a prática jornalística. Como a própria autora cita no livro: “A ambiguidade moral do jornalismo não está nos seus textos, mas nas relações das quais estes surgem”, nesse caso não interessa o que é feito e sim do modo como é feito. Malcolm chega a defender em uma parte do livro que o método apuração em muitos casos sequer influi no que o entrevistado diz. Ela cita como exemplo as respostas de MacDonald para ela e outro jornalista (Keeler), que foram idênticas, apesar dos métodos de entrevistas dos dois jornalistas serem diferentes.
O professor Jeffrey Elliot, que também estava escrevendo um livro sobre a história de MacDonald, fala sobre a argumentação que se pode mentir para conseguir informações em algumas situações: "Não acredito na ética situacional e certamente não acredito que os jornalistas devam mentir e deturpar para obter a colaboração de alguém. Acho também que esta duplicidade lança sérias dúvidas do que está escrito. Para mim, se a liberdade de imprensa depende do direito a mentir, então é uma liberdade que não deve ser defendida”. Elliot deu essa declaração no próprio julgamento do caso McGinniss-MacDonald.
O que levou McGinniss a pagar indenização para MacDonald? Criar juízos de valor que levaram a levantar hipóteses que incriminatórias contra MacDonald ou manter uma relação muito próxima com a fonte? Quando se chega ao final do livro de Malcolm, conclui-se que se McGinniss tivesse falhado em apenas um desses quesitos, ele não sofreria todas as consequências que sofreu, afinal processos contra o que os escritores fazem existem aos montes, que normalmente não dão em nada. Até a própria Janet estava sofrendo um processo na época. Se tivesse escrito uma história sobre “o homem decente na cadeia”, McGinniss também não sofreria o processo. Apenas a junção desses dois elementos levou a história a esse desfecho e repercussão.
McGinniss se entregou tanto ao seu livro que não pensou em mais nada. Claro que a relação entre jornalista e fonte é completamente diferente quando se escreve um livro reportagem do que quando se escreve uma matéria para um jornal diário, por exemplo. Como diz Adelmo Genro Filho em o Segredo da Pirâmide “No jornalismo literário, o jornalista tem que descobrir o objetivo concreto e ao mesmo tempo ter uma vivência subjetiva e emocional das personagens”. O problema no caso foi a metodologia aplicada. McGinniss tentou descobrir todas as faces de seu entrevistado e fez tudo por isso, até enganar MacDonald. Sem dúvida, houve deslize ético na relação.
Alguns livros explicam como deveriam ser as relações com as fontes. O Manual de Redação da Folha de S.Paulo define como deve ser a relação jornalista e fonte: “Cultivar um relacionamento assíduo com elas [as fontes] é importante para a realização de um trabalho jornalístico completo. Isso não significa que o jornalista deva submeter-se às fontes ou desfrutar de sua intimidade”. Ricardo Noblat fala em A Arte de Fazer um Jornal Diário que um bom jornalista não tem muitos amigos. Para construir Fatal Vision, o jornalista não seguiu nenhuma dessas recomendações, se envolveu e se comprometeu com a fonte.
A conclusão que se chega que é sempre que está diante de uma fonte, o jornalista deve se posicionar como tal. Ações como se identificar e manter uma certa distância relacional do entrevistado ajuda o jornalista a não ser manipulado ou sofrer o risco de “enganar” uma fonte inocente que confiou no jornalista e não viu publicado o que queria de seu antigo amigo, como no caso citado por Janet Malcolm em o Jornalista e o Assassino. Agir eticamente ajuda a consolidar o Ethos jornalístico e por consequência consolida a própria atividade, seja diária, semanal ou de jornalismo literário.
Resenha escrita para a disciplina de Ética na Universidade Estadual de Ponta Grossa em 2009
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